Três Formas de Secularidade e seus Desafios à Fé Cristã Contemporânea
Certo brasileiro, estudioso da Escritura e preocupado com o avanço do secularismo no Ocidente cristão, ficou profundamente perturbado em recente viagem pela Europa. Absorto com as imensas catedrais europeias, símbolo da expansão e opulência da tradição cristã ocidental, admirou-se pelo fato de a maioria delas servirem mais a propósitos culturais, turísticos e museológicos do que ao culto, à adoração, embora permaneçam ali um grupo de fieis e uma sombra da presença cristã. Comparado à expansão e diversidade do cristianismo latino-americano, com todos os contornos multiculturais e teológicos, indagou a respeito das formas do secularismo, dos desafios à fé cristã, e o que significa para um cristão viver em uma Era Secular.
Como se sabe, a secularidade é um fenômeno que se estende de maneira diferente e parcial para além do norte do Ocidente. Os países islâmicos, a Índia e a África não são classificados como “secularizados”, na perspectiva de Charles Taylor, em sua Era Secular.
Pelo menos três pistas são apresentadas pelo autor para definir e distinguir as formas de secularidade: a privatização da religião, o abandono da prática religiosa e as condições modernas da fé.
A ausência da religião nos espaços públicos. Nas sociedades pré-modernas a vida estava embasada e organizada em fundamentos sagrados e sob o olhar atento e vigilante da religião. A vida nessas sociedades e a organização do Estado apontavam para o transcendente. As imensas catedrais com suas torres elevadas simbolizavam a forma como o sagrado tocava a terra. Com a autonomia dos estados ocidentais, a cosmovisão anterior torna-se desnecessária e não havia mais a necessidade de se conectar com o sagrado. A religião torna-se cada vez mais questão privada e de caráter particular na Modernidade. Atualmente, não apenas na Europa, mas em vários países secularizados, é possível envolver-se em diversas áreas da vida pública e nem sequer ouvir, notar e reconhecer o sagrado como necessário à manutenção da vida e dos valores morais, exceto pelas catedrais, que dividem espaço interno entre turistas e religiosos – uns oram, outros, fazem selfie. Esta mudança acena para a mudança de um paradigma cultural fundamentado no sagrado para um novo paradigma cultural de base secular, na qual o sagrado entra na agenda turística. Logo, a primeira via para entender o atual contexto de secularidade da sociedade diz respeito ao esvaziamento da religião nas esferas sociais e públicas, às vezes impostas por um regime político totalitário, outras, quando um regime democrático faz a completa separação entre o Estado e a Igreja, mas não elimina a manifestação do sagrado.
Abandono de convicções religiosas. Essa segunda via refere-se ao fato de pessoas abandonarem suas convicções e práticas religiosas, afastando-se de Deus e deixando de frequentar os templos cristãos. Bruno Latour afirma que uma sociedade moderna e secular é aquela que afasta Deus tanto do jogo das leis da natureza, quanto das leis da República. O Sinai cede ao Liceu! Jerusalém a Atenas. A razão prática, autônoma e senhora de si, é a única via confiável. A emancipação humana se traduz como confiança inalheável na razão, sustentada pelas evidências da ciência, da vida política, da filosofia e da arte, todas embaladas pela ideia de progresso. Assim, os países da Europa ocidental se tornaram seculares, mesmo aqueles que mantêm alguma referência do sagrado nos espaços públicos. A secularidade então é entendida como declínio da fé cristã e a substituição desta por outras formas de crenças de natureza materialista, como a crença na ciência e na razão, no materialismo histórico, ou na teoria evolucionária. Contudo, essa perda da crença em Deus e o abandono da fé religiosa é um fenômeno histórico e antigo. Na Antiguidade há um movimento do politeísmo das religiões para o monoteísmo judaico-cristão, e todo esse processo demonstra que a fé em Deus é um dado primeiro do sentimento religioso. Na Idade Média, de Anselmo a Tomás de Aquino, a fé em Deus é demonstrada a partir dos ensinos que englobam a filosofia e a teologia numa “inteligência da fé”. Cinco provas (movimento, eficiência, sensível, graus de perfeição, ordem do mundo) são expostas para justificar a racionalidade de se crer em Deus, na qual o conhecimento natural eleva-se até Deus. Na aurora da modernidade, R. Descarte e B. Spinoza rompem com os ensinamentos fundados sobre a tradição e as autoridades do passado e expõem seus projetos em busca da verdade por meios próprios, apoiando suas certezas sobre evidências racionais “claras e distintas”, adquiridas pelo exercício da dúvida metódica (Penso, Logo existo). Ambos conduzem à dissolução da essência de Deus no conceito em que se realiza a metafísica e à morte de Deus, pois a definição de Deus a partir do Ser o aprisiona em um conceito fabricado pelo homem, ou seja, um ídolo, e gera um ateísmo conceptual que afeta todas as provas apologéticas, de Aquino a Leibniz. Conforme Heidegger, definir Deus como a Ur-sache (Descartes, Spinoza, Leibniz, Hegel), isto é, “a questão originária”, significa afirmar que ele não pode ser mais adorado pelo crente e tampouco ser reconhecido na religião sob a imagem (o ídolo) do Deus dos filósofos.
A perda da crença em Deus na modernidade, portanto, é um processo histórico do qual a secularidade é uma de suas manifestações práticas. Em parte, ou em grande parte, os filósofos e teólogos cristãos foram responsáveis por esse processo da perda da crença no Deus revelado por Jesus, gerando entre outras coisas, o abandono da convicção religiosa.
As condições da fé no mercado religioso. Essa terceira via é fruto maduro dos outros dois movimentos anteriores, e constitui-se o ápice da secularidade, principalmente nas sociedades democráticas, plurais e multiculturais. Se na sociedade pré-moderna, a torre das catedrais era símbolo do sagrado que tocava a terra, às condições da fé moderna no mercado religioso tem como símbolo as construções horizontais de aço e vidro da Escola de Bauhaus. A relação do sagrado não procede de “cima para baixo”, mas na “horizontalidade” de uma fé à imagem e semelhança do homem moderno. A secularidade consiste então na passagem de uma sociedade em que a fé em Deus é inquestionável para uma na qual a fé torna-se mais uma opção entre outras e, em geral, não a mais fácil de ser abraçada. A fé cristã não é a única a disputar pelo interesse e adesão das pessoas, mas divide o espaço público com outras crenças e saberes religiosos opostos. Como reação, para não perder adeptos e sem a reflexão teológica devida, as lideranças eclesiásticas tendem a jogar com as regras da modernidade, as mesmas que elas deveriam condenar e redirecionar.
As consequências se percebem sem a necessidade de uma pesquisa profunda: (a) um sagrado centrado na pessoa humana, em seu bem-estar e sucesso; (b) templos horizontais destituídos de sacralidade, sem símbolos e apelos estéticos aos sentidos – espaços vazios de referências teológicas e sacras; (c) liturgias centradas na catarse coletiva, como fuga da realidade, de si, do outro, em direção ao Deus ex machina, coisificado, rebaixado à estatura das necessidades humanas, em vez do Deus Aba, revelado por Jesus Cristo; (d) a substituição da pregação cristocêntrica pela mensagem motivacional do “coach”. O pregador não é mais um “homem de Deus”, como os profetas, que falavam em nome de Deus para a humanidade, mas um “coach”, que fala em nome do homem para o homem.
Por fim, cabe dizer que o processo da secularidade não é extrínseco a religião, mas intrínseco. Surge no seio da própria fé! É um processo intra-religioso. A intensidade da secularidade está relacionada à intensidade com que a religião se manifesta na sociedade. Deste modo, a secularidade intervém nas condições de crenças tradicionais, impondo um sagrado difuso, flexível e líquido. Ela substitui a identidade de Jesus, pela sua própria identidade, gerando assim, cristãos à sua própria imagem. Ela redefine a experiência do sagrado, no centro da tradição evangélica e pentecostal. Mas o cristão que a tudo discerne, vê os rastros da secularidade e por ela não é reconfigurado.
Esdras Costa Bentho é pedagogo, mestre e doutor em Teologia Sistemática e Pastoral pela PUC RJ. Coordenador e professor da Graduação em Teologia da Faecad e autor dos livros Hermenêutica Fácil e Descomplicada; A Família no Antigo Testamento; Igreja Identidade e Símbolos; Davi, as vitórias e derrotas de um homem de Deus; Introdução aos Estudo do Antigo Testamento, todos editados pela CPAD, e ainda, Da História à Palavra: a teologia da revelação em Paul Ricoeur (Reflexão).
Autor: Esdras Bentho
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