Arqueologia Bíblica
A chamada “arqueologia bíblica” tem uma longa tradição nas pesquisas bíblicas. Geralmente se refere às escavações e história da região onde a Bíblia se formou, chamada modernamente de Levante. No período cristão medieval, os bizantinos chamaram essa região de “Terra Santa”, que incluía os territórios do Norte e do Sul, ou de Israel e Judá.
Todavia é necessário estabelecer os conceitos, pois ao falar de Israel é imprescindível designar se trata da Beit Omri (Casa de Onri), anterior a invasão assíria, em 722 a.C., ou a Judá, quando torna-se Israel após a invasão assíria. Mesmo aqui é necessário estabelecer se o período é o de Judá antes do exílio babilônio (587-538), a Jehud Parvak, ou Província de Judá do período persa, ou então a Judá helenística e hasmoneia.
Ao se reconstruir a história antiga de Israel é importante considerar as diferenças entre as tradições do Norte e do Sul presentes na Bíblia. Estabelecer cientifica e adequadamente os períodos e tradições distintas são extremamente necessários para não atribuir uma descoberta arqueológica ao período e tradição diferente e, assim, concluir de modo inadequado.
De modo geral, o pesquisador deve estar atento à expressão “arqueologia bíblica”, geralmente empregada como um ramo da Arqueologia que escava o Levante e o Antigo Oriente Próximo com o propósito de provar a veracidade histórica da narrativa bíblica. Infelizmente, as primeiras escavações arqueológicas de Edward Robinson (1794-1863), que identificou os grandes sítios arqueológicos da Palestina, de Frederick Jones Bliss (1859-1937), em Tell el-Hesi, e Robert Alexander Stewart Macalister (1870-1950), em Gezer, foram objetos de propagandas sensacionalistas da “arqueologia bíblica”, tornando-se locais de turismo religioso. Por um lado, buscava-se obter fundos para a atividade arqueológica, por outro, confirmar as narrativas bíblicas, já que alguns deles eram de tradição cristã.
A arqueologia assim desenvolvida tinha como objetivo provar a historicidade da Bíblia, seus relatos e lugares, vinculando a descoberta e sua interpretação aos textos bíblicos. Ainda hoje o turismo religioso em Israel continua explorando a relação entre sítios arqueológicos e a Bíblia.
Nos anos de 1960 a 1980, o modelo tradicional de conquista de Canaã de W. F. Albright (1891-1971), G. E. Wright (1909-1974) e J. Bright (1908-1995), para descrever o Israel primitivo e os patriarcas no período do Bronze Médio será contestado por exegetas alemães liberais como Martin Noth (1902-1968) e Karl Elliger (1901-1977), pelo fato de relacionar as descobertas à leitura da Bíblia. Mesmo o modelo da “migração” de M. Noth, Y. Aharoni (1919-1976) e Albrecht Alt (1883-1956), assim como o de “revolta camponesa” de G. Mendehal (1916-2016) e N. K. Gottwald (1926-) também entrarão em colapso a partir dos estudos de Israel Finkelstein (1949-), que escavou o planalto central de Canaã e identificou cerca de trezentos sítios do final do Bronze Tardio e início do Ferro I, concluindo que a formação de Israel era resultado da população nativa com ampla continuidade cultural e sem influência externa. A perspectiva de Finkelstein é a da baixa cronologia, que atualmente se impõe como modelo, mas tem recebido críticas dos maximalistas, isto é, dos que aceitam a Bíblia como fonte primária.
São quatro as fontes para o estudo da arqueologia do Levante: antropologia histórica – trabalha com os dados da geografia, agricultura, assentamentos humanos –, fontes primárias – evidências arqueológicas palestínicas ou extrapalestínicas, como a Estela de Merneptah, os Óstracas de Samaria –, fontes secundárias – a Bíblia Hebraica -, fontes terciárias – livros da Bíblia Hebraica, que retomam as secundárias.
A tendência atual da arqueologia é o de não aceitar de início a narrativa bíblica como pressuposto, mas fundamentar toda a construção histórica de Israel em dados arqueológicos primários, entre outras evidências, mas sem negar a fonte secundária, o texto bíblico, preservando o lugar e importância da Bíblia como fonte auxiliar. O que se percebe da arqueologia bíblica, portanto, é seu movimento de afirmação e contestação da interpretação dos dados colhidos, pois os pressupostos tendem a guiar o trabalho arqueológico.
Contudo, desde 1980, os arqueólogos procuram realizar uma arqueologia científica, mais crítica e desvinculada da preocupação em comprovar ou contestar a Bíblia. Esse novo trabalho está sendo realizado principalmente pelo Departamento de Arqueologia de Tel Avive que, desde 1992, retomou as escavações no Tel de Megido, que por sua excelência estratigráfica tornou-se um laboratório da nova arqueologia.
Os arqueólogos Israel Finkelstein, David Ussishkin, Robert Coot, Baruch Halpern e Norma Franklin, esta última da Universidade de Haifa, têm publicado suas descobertas arqueológicas e, com isso, trazendo muitos dados importantes ao relato da Bíblia, ainda que nem sempre concorde com as interpretações que procuram relacionar os achados arqueológicos com as narrativas bíblicas. Atualmente as ciências bíblicas se aproximaram desse modelo de arqueologia científica para a compreensão da história da formação do texto sagrado e o exercício da exegese bíblica.
É assim que a arqueóloga Norma Flanklin, especialista nas três cidades do Reino do Norte de Israel – Samaria, Megido e Jezreel, em visita recente ao Brasil para participar do IX Congresso Internacional de Pesquisa Bíblica, realizada pela Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib), compartilhou suas descobertas e como elas estão relacionadas à narrativa bíblica. Ela descreveu três descobertas que atestam o texto de 1Reis 16.16, que trata da dinastia Onrida (beit Omri), do Reino do Norte. A existência de Onri é confirmada por três fontes extrabíblicas que coincidem com a narrativa bíblica: (1) a inscrição de Salmanaser III, (2) a Estela de Mesha e (3) os fragmentos de uma estela aramaica de Tel Dan. A primeira fonte é uma inscrição de monólito de Salmanaser III, que comemora a Batalha de Qarqar, ocorrida por volta de 853 a. C., e descreve um israelita de nome Acabe, filho de Onri, e destaca que o reino nortista era uma grande potência militar. A segunda, de IX a.C., do rei Mesha de Moabe, registra uma revolta contra o reino de Israel, ocorrida 40 anos após a morte de Onri. A terceira, produzida em Tel Dan por Hazael de Arã, em 841 a. C., faz referência ao assassinato dos reis: Jorão, filho de Acabe, e Acazias, Filho de Jeorão (da casa de Davi). Entre outros, a arqueóloga descreveu como as escavações em Samaria, Megido e Jezreel esclarecem ou se relacionam com os textos de 1Rs 9.15; 16.28; 19.17; 22.37; 2Rs 2.14; 9.15; 10.35; 13.9; 14.16; 2 Cr 22.7.
É inegável a contribuição da arqueologia para a compreensão dos elementos históricos, geográficos, culturais e textuais da Bíblia e, por isso, é sempre de bom alvitre ler a Bíblia com ajuda da pá dos arqueólogos.
Esdras Costa Bentho é pedagogo, teólogo, mestre e doutor em Teologia pela PUC RJ, Coordenador da Graduação em Teologia da Faecad e membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib)
Autor: Esdras Costa Bentho
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