A Doutrina da Humanidade de Jesus: A Dimensão Literária de uma Verdade Insofismável
A humanidade de Jesus é uma revelação teológica apresentada com muita clareza pela Sagrada Escritura. Todo o Novo Testamento revela direta e indubitavelmente a humanidade de Jesus, exceto pelo pecado, ele foi homem perfeito e perfeitamente reconhecido como ser humano por todos (2Co 5.21; Hb 4.15; Lc 23.42).
1. Reconhecido como homem.
Nos Evangelhos, Jesus é chamado de “homem” em diversas perícopes e nos mais variados contextos. Algumas afirmações da humanidade de Jesus são a partir da perspectiva negativa de seus opositores (Mt 11.19b; Mc 14.71; Lc 23.14; Jo 9.16; 10. 33; 11.47; 19.5). Em cada um desses textos, os detratores de Jesus acentuam a sua plena humanidade, ora para negar sua divindade (Jo 10.33), ora para se opor aos sinais de seu ministério (Jo 9. 16; 11.47; Mt 11.18-19), ou ainda para provocá-lo (Mc 12.14). Pilatos chama-o de “homem”, reconhecendo sua inocência (Jo 19.5; Lc 23.14), e a porteira reconhece Pedro como discípulo do homem Jesus (Jo 18.17; Mc 14.71). Contudo, as afirmações positivas de sua humanidade são abundantes. O próprio Jesus chama a si mesmo de “homem” (Jo 8.40), e o centurião confessa que Jesus era homem, o Filho de Deus (Mc 15.39; Lc 23.47). João Batista afirma que Jesus é o homem que o sucederá (Jo 1.30); a samaritana reconhece Jesus como homem e Messias (Jo 4.29); o cego de nascença chama a Jesus de homem (Jo 9.11), e os servidores atestam que “homem algum falou assim como este homem” (Jo 7.46). Essas declarações estão no centro da realidade concreta que Jesus viveu e foi conhecido.
2. A identidade humana de Jesus.
Além do reconhecimento público de que Jesus era plenamente humano, os evangelistas acentuaram que ele procedia de uma família. Por um lado, eles apresentam sua posição jurídica por meio de José (Mt 1.1-17; Lc 4.22), por outro, sua posição biológica por meio de Maria (Lc 3.23-38). Embora a tábua genealógica tenha um propósito real e messiânico (Mt 21.9; Jo 7.41-42; cp. Gn 22.18 com Mt 1.1), ela atesta a consanguinidade de Jesus com seus ascendentes, e o seu pertencimento à família hebraica poderia ser atestado (Mc 6.3).
Além dessa relação genealógica, ele era reconhecido como “carpinteiro” (Mc 6.3), profissão de José (Mt 13.55), como galileu (Mt 26.69; Lc 23.6), e nazareno (Mt 2.23; 26.71; Mc 1.24; 14.67; 16.6; Lc 4.34; 18.37; 24.19) e cumpria funções sociais como qualquer pessoa: foi circuncidado (Lc 2.21-24); pagava impostos (Mt 17.24-27); participava de casamentos (Jo2.1-12); frequentava o templo, as sinagogas e participava das festas judaicas (Lc 4.14-21; Jo 2.12-23).
As expressões “galileu” e “nazareno” indicam muito mais do que a relação de Jesus com esses locais geográficos e culturais e com as profecias relacionadas (Mt 2.23; Jo 7.52), elas descrevem um pertencimento histórico que somente um ente humano é capaz de ter. Esses aspectos que acentuam a humanidade de Jesus são de características extrínsecas entorno do homem Jesus. Qualquer cristão de fins do século 1 poderia pela mera observação da realidade descrita pelos Evangelhos constatar que Jesus era homem em toda sua completude.
3. A humanidade de Jesus e sua expressividade.
Os evangelistas não se restringiram aos aspectos exteriores da vida de Jesus, mas descreveram com expressionismo e intimismo seus sentimentos humanos. Ele sentia angústia, tristeza (Mt 26.37-38) e alegria (Lc 10.21; Jo 3.29; 15.11; 17.13); indignação (Mc 3.5), amor (Mc 10.21; Jo 11.5; 13.1; 14.9; 15.12), empatia e compaixão (Mt 9.36; 14.14; 15.32; 19.34; Mc 1.41; 6.34; 7.13). Cada um desses sentimentos e os seus antônimos também são apresentados como qualidades ou defeitos de caráter dos contemporâneos de Jesus pelos evangelistas, como por exemplo, a alegria das mulheres (Mt 27.8), de João Batista no ventre de sua mãe (Lc 1.44) e dos setenta (Lc 10.17). Essa identificação dos sentimentos de Jesus com os das demais pessoas era para mostrar que ele era homem em toda completude.
Jesus vivia as emoções humanas com tanta intensidade que o termo grego eklausen (chorou) em Lucas 19.41 pode ser traduzido como “chorar amargamente”, como traduz a ARC em Lc 22.62: “E, saindo Pedro para fora, ‘chorou amargamente’ (eklausen)”. Jesus fora tomado de uma tristeza tão profunda e incontrolável que extravasou-a em lágrimas. Ele mesmo afirmara no Getsêmani: “A minha alma está cheia de tristeza até à morte” (Mt 26.38). Noutra ocasião, o evangelista descreve o sentimento de abandono sentido por Jesus, “Deus meu, por que me desamparaste?”. “Desamparar”, no grego enkatélipes, procede de um termo (kateleípô) que significa “deixar para trás em algum lugar” e, por extensão, “abandonar”. Na perícope mateana refere-se à consternação que leva ao desalento. De modo semelhante, João 2.17 emprega o vocábulo dzêlo, que possivelmente significa aqui “indignação ardente” (Hb 10.27). Todos esses sentimentos são constituintes da natureza humana. E com a descrição deles, os evangelistas demonstravam que, exceto pelo pecado, Jesus sentia as emoções comuns aos seres humanos. Ele era verdadeiro homem.
4. A humanidade de Jesus e suas limitações.
Os evangelistas não apenas descreviam os sentimentos de Jesus, mas também suas necessidades e limitações ligadas à condição humana. Eles descreveram aspectos tão humanos da vida do Carpinteiro, que seria impossível a qualquer gnóstico e maniqueísta posterior negar-lhe sua plena humanidade. Ele teve as necessidades mais básicas da natureza humana: fome (Mt 4.2; 16. 6-11; 21.18; Mc 11.12; Lc 4.2); sede (Jo 19.28) e cansaço (Jo 4.6). Não há nada mais humano do que a satisfação dessas carências, necessárias à subsistência da própria vida, como condição inalienável da natureza humana.
O corpo físico de Jesus era tão limitado quanto o de qualquer outro homem. As mesmas agruras e adversidades comuns à humanidade também eram uma realidade presente na vida física de Jesus (Mt 26.36-46).
Deste modo, os evangelistas avançam ainda mais para descrever o quanto Jesus era humano. Não se trata mais dos sentimentos e necessidades comuns à humanidade, mas de compartilhar por meio de seu corpo físico as agruras, sofrimentos e limitações a que estão sujeitos toda a humanidade (Mt 26.38-39).
É assim que se diz que Jesus sofreria, seria rejeitado e morto (Mc 8.31; Lc 24.26, 46; At 17.3), o que atesta sua plena condição humana. Ele foi tentado pelo diabo (Mt 4. 1-11), sentiu-se só (Mt 26.40,43), foi traído por seu amigo (Mt 26.48), tratado injustamente como salteador (Mt 26.55), acusado injusta e falsamente (Mt 26.59-60), esbofeteado e escarnecido (Mt 26.67-68), desprezado por seu discípulo (Mt 26.70) e, por fim, morto (Mt 27.32-55).
Essas narrativas representavam a base comum da crença da igreja primitiva. Por meio delas se afirmava que Jesus era constituído de um corpo físico real, concreto, de carne e sangue, e, portanto, as heresias cristológicas que negavam a corporeidade de Jesus e sua plena humanidade, exceto pelo pecado, estavam equivocadas.
Os evangelistas atestam a ressurreição corpórea de Jesus e sua plena identificação inicial com a dimensão física. O corpo ressurreto de Jesus era de carne e osso, podia ser tocado, possuía mãos e pés, e era possível comer e beber (Lc 24.36-42; Jo 20.20, 27), embora essas necessidades físicas não fossem mais imperiosas.
A estratégia narrativa dos evangelistas é apresentar Jesus plenamente humano. Por meio da narrativa dos Evangelhos apresentavam a teologia da plena humanidade de Jesus, enquanto as Epístolas, por meio do ensino, explicavam teologicamente a humanidade de Jesus e seus aspectos éticos para a vida da comunidade de fé.
Nos Evangelhos, a memória que se anuncia e se faz narrativa é carregada de interpretações imanentes à própria narrativa, que está no centro da experiência verbal, discursiva e literária. A ética se deduz da leitura que reconhece a Jesus plenamente humano por meio do que é narrado. Nas Epístolas, com seu discurso direto e didático, não se espera que o leitor deduza, mas a ortodoxia é seguida imediatamente pela ortopraxia. É assim que o escritor aos Hebreus atesta a completa humanidade de Jesus pela sua participação solidária nas mesmas agruras, tentações e limitações humanas (2.14-18).
Somente assim Jesus poderia tornar-se um sumo misericordioso, “porque, naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados” (Hb 2.18), pois “em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4.15). Aos Filipenses Jesus é apresentado como verdadeiro homem, cuja obediência leva-o à morte (2.8; Hb 5.7-10). A base soteriológica da mediação feita por Jesus somente é possível pela sua humanidade (1Tm 2.5; Rm 5.15).
De igual modo, Pedro afirma que o sofrimento de Jesus serve como exemplo (1Tm 1.16) para que sigamos “as suas pisadas”, pois diante de tudo que padeceu e sofreu permaneceu justo, santo e incontaminado para que “pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados” (1Pe 2.21-24).
O apóstolo João vai ainda além quando afirma, para que não paire qualquer dúvida sobre a humanidade de Jesus, a sua experiência (ver, ouvir, tocar) com Jesus homem (1Jo 1.1-3). Para o apóstolo, a humanidade de Jesus e a realidade de seu corpo físico eram tão fundamentais para a fé cristã que se constituíam em critérios para julgar os falsos ensinadores e suas heresias: “Nisto conhecereis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus” (1Jo 4.2-3).
Esse critério discernente é válido ainda hoje e no futuro para combater falsas cristologias que neguem ou possam negar a completa humanidade de Jesus. A humanidade de Jesus é fundamento inalienável da fé cristã.
Todas essas claras afirmações sobre a humanidade de Jesus tornou-se uma doutrina fundamental no dogma cristão. Mas tarde, quando heresias cristológicas foram difundidas, a tradição teológica encontrou nos ensinos dos Evangelhos e das Epístolas elementos suficientes e incontestáveis para combater e condenar o docetismo, gnosticismo, maniqueísmo, eutiquianismo, entre outras heresias que negavam a completa humanidade do Filho de Deus.
5. Pneuma, Psychê e Sôma: a natureza de Jesus e sua identidade humana
Outra estratégia literária usada pelos Evangelistas para descrever a plena humanidade de Jesus era falar dele como constituído de espírito (pneuma), alma (psychê) e corpo (sôma). Essas três dimensões singulares e integrais da humanidade descrevem o ser humano uno, mas plural (1 Ts 5.23). O homem não é apenas uma dessas três constituições, mas a soma delas. Por essa razão, os evangelistas empregam a palavra espírito (pneuma) para se referir tanto a Jesus como a qualquer outro ser humano (Mt 26.41 com Mt 27.50; Mc 2.8). Em Lucas 23.46, Jesus entrega o seu pneuma ao Pai e expira (Mt 27.50), indicando que o espírito é uma das dimensões da existência humana que permanece após a morte.
Jesus também é descrito constituído de psychê humana em Mateus 26.38 (a minha alma está cheia de tristeza), assim como as demais pessoas são constituídas (Mt 10.28; 11.29; 16.26; 22.37). O emprego de psychê aponta para a vida interior, o íntimo da pessoa e suas emoções como alegria, tristeza, pesar, angústia. E nisto Jesus se identificava completamente com a humanidade, pois era verdadeiramente humano.
Os evangelistas também descreveram Jesus constituído de sôma humano. Observe que em Mateus 6.22-26 o sôma se refere à constituição física mais fundamental da vida humana, aquela pela qual a experiência com o mundo físico é concreta e real, e, por isso mesmo, se trata de uma dimensão soteriológica juntamente com a psychê (Mt 5.28-30; Rm 8.11, 23).
Jesus se refere ao seu sôma (Mt 26.12, 26-28) e a doutrina e mistério da encarnação do Verbo depende justamente dessa realidade física e concreta (Jo 1.14; Hb 10.5-6,10, 20). O sôma de Jesus era idêntico em tudo, exceto pelo pecado, ao de qualquer ser humano; constituído de todos os órgãos e sistemas próprios do organismo. Assim, sentia dor, calor, frio, fome, sede, possuía sangue, necessitava de oxigênio, como todo e qualquer corpo humano. Na morte, o sôma é sepultado (Mt 14.12; 27.58-60), mas a promessa é de que o sôma dos que creem ressurgirá glorioso (1Co 15.12-58), assim como o sôma ressurreto de Jesus.
Por fim, o pleno desenvolvimento humano de Jesus é sumariado pelo texto exemplar: E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens (Lc 5.52).
6. A humanidade de Jesus como paradigma da vida no Espírito.
A humanidade de Jesus é apresentada pelos Evangelhos como modelo da vida humana integral no Espírito. Lucas apresenta um conjunto de pessoas cheias do Espírito: João Batista (1,15), Maria (1.35), Isabel (1.41), Zacarias (1.67) e Simeão (2.25,26), mas descreve Jesus em sua humanidade como paradigma da vida plena do Espírito. Entre o início (1.35) e o final do Evangelho (24.49), o Espírito Santo é citado particularmente em relação à vida e obra de Jesus.
O ministério de Jesus e o seu ensino são enfatizados em relação à dependência humana de Jesus do Espírito Santo para realizar seu ministério. A vida inteira de Jesus era dirigida pelo Espírito Santo. Foi concebido pelo Espírito (1.35), batizado pelo Espírito (3.22), provado pelo Espírito (4.1), foi-lhe dado poder pelo Espírito para o seu ministério (4.14,18), ele se alegrava pelo Espírito (10.21), e esperava que seus discípulos completassem sua obra no poder do Espírito (24.49).
Observe que somente Lucas afirma que no batismo e no deserto, Jesus estava “cheio do Espírito Santo” (4.1), e o regresso para a Galileia deu-se “no poder do Espírito Santo” (4.14). A temática precípua do ministério de Jesus segundo a narrativa lucana é que Jesus realiza os milagres através da ação do Espírito Santo (4.17-22), como paradigma de sua completa dependência humana da ação do Espírito.
7. Conclusão
A humanidade de Jesus é fundamento da fé cristã primitiva e contemporânea. Nos Evangelhos e nas Epístolas Jesus é apresentado como plenamente humano. Esses ensinos serviram de base contra as heresias cristológicas que surgiram na história do cristianismo e são fundamentos para a cristologia moderna.
A humanidade de Jesus não é apenas um conceito teológico, mas um modelo de vida para todo cristão. A humanidade de Jesus é modelo da vida humana integral. Contudo, Jesus não era um homem qualquer. Ele era plenamente homem e plenamente Deus e revelou o Pai através de sua humanidade perfeita. O cristianismo tem um modelo de humanidade integral por meio do que Jesus viveu e ensinou, mas também, por meio dessa mesma humanidade perfeita vivida por Jesus, temos a verdadeira imagem do Pai revelada no próprio Jesus.
Esdras Costa Bentho é pedagogo, mestre e doutor em Teologia Sistemática e Pastoral pela PUC RJ. Coordenador e professor da Graduação em Teologia da Faecad e autor dos livros Hermenêutica Fácil e Descomplicada; A Família no Antigo Testamento; Igreja Identidade e Símbolos; Davi, as vitórias e derrotas de um homem de Deus; Introdução aos Estudo do Antigo Testamento, todos editados pela CPAD, e ainda, Da História à Palavra: a teologia da revelação em Paul Ricoeur (Reflexão).
Autor: Esdras Bentho
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